PERDENDO O EQUILÍBRIO

Treinamento do Sistema Vestibular
Marcos Pontes
23/12/2005

Fique em pé. Feche os olhos. Abra os braços. Coloque um pé apoiado no joelho oposto. Fique assim, em um pé só, com os olhos fechados por um minuto. Conseguiu? Parabéns, você acabou de usar seu sistema vestibular para ajudá-lo a manter o equilíbrio. Esse sistema é composto por dois conjuntos de anéis, um em cada lado da cabeça, próximos dos ouvidos. Cada anel dá informações ao cérebro sobre acelerações em um determinado plano. Quando submetidos a qualquer aceleração, o líquido dentro desses anéis faz com que pequenos pelos nas paredes internas do “sensor” sejam movimentados, transmitindo assim a informação de aceleração ao cérebro. Funcionam bem quando estamos no nosso ambiente normal, no solo, e realizando movimentos usuais. Problemas nesse sistema podem ser bastante desagradáveis. Pergunte a alguém que tenha sofrido de labirintite!
Obviamente esses sensores não são os únicos usados para percebermos equilíbrio e movimento. A visão e o tato, por exemplo, também são importantes. Todas essas informações são processadas em conjunto por nosso cérebro e, geralmente, são coerentes em condições normais.
Porém, os problemas começam quando decidimos “sair do chão”. Desenvolvido ao longo de muitas gerações em “terra firme”, nosso sistema vestibular é tão adaptado para o vôo quanto são os nossos braços como asas.
A dinâmica do vôo pode facilmente induzir erros nos dados desse sistema para o cérebro. Nessa situação, quanto confrontados com informações de outros sensores, a visão por exemplo, ocorre um tipo de “conflito mental” na determinação da nossa atitude ou movimento. A resposta do corpo é forte e rápida mas, normalmente, dura apenas o período de exposição. Entre os sintomas, calor, aumento de batimento cardíaco, variação de pressão, vômito, etc. Ruim não é? No espaço, isso é comum nos primeiros dias. É chamado de “space sickness”.
Para combater esses efeitos, temos um programa intenso de treinamento do sistema vestibular antes do vôo. A idéia básica é aprender a reduzir o conflito de informações. Esse programa inclui dois tipos de medidas: ativas e passivas. As ativas incluem exercícios físicos em aparelhos de musculação, natação e vôos parabólicos (zero “g” ***). As passivas utilizam cadeiras giratórias associadas a movimentos específicos da cabeça efetuados durante a rotação estabilizada. Durante os três meses que precedem ao vôo espacial, executamos atividades esse programa com frequência semanal de três vezes em média.
Naturalmente, na fase de seleção para cosmonauta, passamos por uma série de testes para determinar nossa condição inicial em termos do sistema vestibular.
Estava no meio de uma manhã recheada de exames médicos com nomes estranhos quando fiz meu primeiro teste de “vestibular” aqui na Cidade das Estrelas. Entre tantos testes desconhecidos, muitos deles extremamente desagradáveis ali estava ele, velho conhecido, vestido de russo. Achei ótimo! Para mim, apesar do nome em alfabeto cirílico, exercícios na cadeira giratória não eram nenhuma novidade. Como todos os pilotos da Força Aérea, tive vários treinamentos fisiológicos no Centro de Medicina Aeroespacial no Campo dos Afonsos, RJ.
No horário marcado no cronograma, caminhamos, eu e o intérprete, por um corredor escuro que levava a uma parte ainda não visitada por mim, até então, no primeiro andar do edifício do hospital do Centro.
Entramos no famoso laboratório de testes de sistema vestibular. Lá estava ela: a cadeira giratória. Em destaque, cercada por correntes, bem no meio da sala. Exatamente como descrito por alguns dos cosmonautas que conversei na semana anterior. O médico responsável, extremamente sério, já aguardava por mim segurando uma série de eletrodos e uma toalha na mão. Apesar da possível pressão psicológica, estava tranquilo. Afinal, já conhecia bem os efeitos desse exercício sobre meu corpo. Mas, certamente, havia um certo “mistério” no ar a respeito daquele teste específico.
A sequência de procedimentos foi explicada em detalhes, enquanto uma enfermeira instalava os eletrodos no meu peito para captar batimentos cardíacos. No meu braço direito foi colocado o medidor de pressão sanguínea. Tudo pronto, assumi minha posição na cadeira e prendi o cinto de segurança. Conforme as instruções, fechei os olhos e baixei a cabeça. Senti o início do giro. A cada 15 segundos, uma buzina tocava. Era o comando para eu mudar a posição da cabeça. Alternadamente eu colocava a cabeça para trás, como quem olha para o teto, e para baixo, como quem olha para os próprios joelhos. Esses movimentos, associados ao giro da cadeira causam ilusões “radicais” de acelerações. É como estar em uma enorme “montanha russa”. Interessante, esse nome nunca tinha feito tanto sentido! Depois de alguns minutos, os primeiros sintomas começaram a aparecer: calor, suor, mãos geladas, arrepio nas costas. Não podendo usar a visão como referência primária, procurei distrair minha mente passando as mãos levemente na toalha que segurava no colo. Tentava determinar sua textura e os possíveis desenhos na sua superfície. A buzina não parava, nem o giro, muito menos os sintomas. Pelo contrário, o intervalo das buzinas pareciam diminuir, o giro parecia aumentar e os sintomas se espalhavam pelo corpo com choques de calor e frio. Exatamente como eu lembrava dos testes na Força Aérea. Nada agradável, mas tolerável.
Vários minutos se passaram. O primeiro sinal vindo diretamente do estômago. Veio rápido e sem aviso prévio. Chegou até a garganta e voltou. Deixou o gosto na boca. Pensei em usar a toalha. Não precisa. O giro continuou, as sensações também. Vertigem séria. Mais um sinal do estômago. Hora de parar. Afinal, não seria educado utilizar as acelerações radiais daquele movimento giratório para literalmente “me espalhar” por todo aquele ambiente. Fixei a cabeça em posição ereta. Fiz o sinal combinado. O giro da cadeira diminuiu. Parou. Abri os olhos. Continuei girando por alguns bons segundos. Seria interessante ver meus olhos naquele momento. Entreguei a toalha ainda com alguma dúvida. Poderia ser, repentinamente, necessária. Soltei o cinto. Respirei fundo. Levantei. Por segurança, uma das mãos continuou segurando a cadeira por cerca de, mais ou menos, um minuto. Só enquanto o chão se aquietava.
Olhei pela janela. A neve caia mais forte. Voltei minha atenção para dentro da sala, enquanto o médico comentava o exercício, sempre com o mesmo tom sério, e as enfermeiras tiravam os sensores. Tudo certo. Tudo normal. Sem mais perguntas, coloquei a camisa, assinei o protocolo e agradeci. Ao sair da sala, olhei para trás. Lá estava ela, bem no meio da sala, cercada de correntes e com os cintos de segurança pendurados das laterais. Contudo, agora sem qualquer “mistério” no ar. Sobrou a fome e a pressa! Coloquei o casaco de neve e segui para o refeitório. A agenda da tarde está cheia!